quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Sessenta e sete dias antes

ENTÃO FOI ASSIM QUE NOÉ SE SENTIU. Você acorda certa manhã, descobre que Deus o perdoou e anda por aí o dia inteiro com os olhos semicerrados porque se esqueceu de como a luz do sol parece quente e áspera contra sua pele, como quando seu pai lhe dá um beijo na bochecha, e o mundo está limpo e mais claro do que nunca, como se o estado do Alabama tivesse sido posto na máquina de lavar por duas semanas com sabão extraforte para realçar as cores, e agora a grama está mais verde e os bufritos mais crocantes.
Fiquei junto às salas de aula naquela tarde, deitado de bruços no gramado que acabara de secar, lendo um livro de história norte-americana – a Guerra Civil, ou, como era conhecida nestas partes, a Guerra de Secessão. Para mim, era a guerra que havia gerado milhares de boas últimas palavras. Como o General Albert Sidney Johnston, que, quando perguntado se estava ferido, respondeu: "Estou, e temo muitíssimo.” Ou Robert E. Lee, que, anos depois da guerra, num último delírio, ordenou: “Ataquem a tenda!”
Estava tentando descobrir por que os generais confederados tinham últimas palavras melhores que do que os da união (as últimas palavras de Ulysses S. Grant: “Água!”, eram tolas), quando reparei que uma sombra bloqueava meu sol. Fazia tempo que não via uma sombra, então fui pego de surpresa. Olhei para cima.
— Trouxe um lanchinho para você, — Takumi disse, largando uma bolacha com recheio de aveia em cima do livro.
— Muito nutritivo. — Eu sorri.
— Tem aveia. Tem bolacha. Tem recheio. É uma verdadeira pirâmide alimentar.
— Com certeza.
Então ficamos sem assunto. Takumi entendia de hip-hop; eu entendi a de últimas palavras e de videogame. Por fim, eu disse:
— Não acredito que eles inundaram o quarto da Alasca.
— Pois é, — Takumi disse, sem olhar para mim. — Bem, eles tiveram seus motivos. Você precisa entender que os trotes dela são famosos até mesmo entre os Guerreiros de Dia de Semana. Ano passado, pusemos um fusquinha dentro da biblioteca. E foi bastante engenhoso desviar água da calha para o quarto dela. Não quero admirar o trabalho deles, mas...
Eu ri.
— Pois é. Essa vai ser difícil superar. — Desembrulhei a bolacha e dei uma mordida. Hmmm... Centenas de deliciosas calorias por mordida.
— Ela vai pensar em alguma coisa, — ele disse. — Gordo...hmmm, Gordo, você precisa de um cigarro. Vamos dar uma volta.
Fiquei apreensivo, como sempre ficava quando diziam meu nome duas vezes com um hmmm no meio. Mas me levantei deixando os livros para trás, e fui para o Buraco do Fumo. Porém, quando chegamos à orla da floresta, Takumi se desviou da estrada de terra.
— Não sei se o Buraco é Seguro, — ele disse.
Não é seguro? Pensei. Não há lugar mais seguro em todo o planeta para se fumar um cigarro. Então o segui pelo espesso matagal, serpenteando entre os pinheiros e os arbustos ameaçadores e espinhosos que batiam na altura do peito. Depois de um tempo, ele se sentou. Coloquei a mão em concha sobre o isqueiro para proteger o fogo de uma leve brisa e acendi o cigarro.
— Alasca dedurou Marya, — ele disse. — Então é possível que o Águia também saiba sobre o Buraco do Fumo. Não tenho certeza. Nunca o vi por aquelas bandas, mas quem sabe o que ela andou dizendo?
— Espera, como sabe disso? — perguntei, incrédulo.
— Bem, primeiro, porque deduzi. Segundo, porque a própria Alasca admitiu. Ela me contou pelo menos parte da verdade, que, ano passado, no final do semestre, ela tentou fugir do campus à noite, depois que as luzes se apagaram, para visitar o Jake, mas acabou sendo pega. Disse que foi cautelosa – desligando os faróis e esse tipo de coisa -, mas o Águia viu, e ela tinha uma garrafa de vinho no carro, então estava ferrada. Ele a levou para casa e lhe fez a proposta que faz a todos que são pegos com as calças na mão. ‘Ou você me conta tudo o que sabe ou vai para o quarto e começa a fazer as malas.’ Alasca não aguentou e contou ele que a Marya e o Paul estavam em seu quarto, bêbados. Quem sabe o que mais ela disse? O Águia a perdoou, pois precisa de delatores para fazer seu trabalho. Ela foi esperta, sabe, por ter dedurado a amiga, porque ninguém pensa em culpar os amigos. É por isso que o Coronel está tão certo de que foram Kevin e seus capangas. Eu também não acreditei que pudesse ser Alasca até me dar conta de que ela era a única no campus que sabia o que Marya estava fazendo. Eu suspeitei do colega de quarto de Paul, Longwell – um dos que fizeram o negócio da sereia sem-braços com você. Mas ele estava em casa naquela noite. A tia dele tinha morrido. Eu verifiquei o obituário no jornal. Hollis Burnis Chase – que nome para uma mulher.
— Então o Coronel não sabe? — perguntei, chocado. Apaguei o cigarro, mesmo não tendo terminado de fumar, porque estava nervoso. Nunca pensei que Alasca pudesse ser desleal. Temperamental, sim. Mas não uma delatora.
— Não, nem pode saber, senão vai ficar furioso e inventar um jeito de ela ser expulsa. Caso não tenha percebido, o Coronel leva muito á sério esse negócio de honra e lealdade.
— Já percebi.
Takumi balançou a cabeça, empurrou as folhas e começou a cavoucar a terra úmida.
— Só não entendo por que ela teria tanto medo de ser expulsa. Eu odiaria ser expulso, mas temos de pagar por nossos pecados. Eu não entendo.
— Bem, ela obviamente não gosta de casa.
— É verdade. Ela só vai para casa no Natal e nas férias de verão, quando o Jake está lá. Que seja. Eu também não gosto de ir para casa. Mas jamais daria esse prazer ao Águia. — Takumi pegou o galho e o enfiou na terra vermelha e fofa. — Olha só, gordo. Não sei que tipo de trote o Coronel e a Alasca vão inventar para acabar com essa história, mas tenho certeza de que nós dois seremos chamados. Só estou dizendo isso para você saber onde está se metendo, porque, se for pego, é melhor assumir a culpa.
Pensei na Flórida, em meus “colegas de escola”, e percebi pela primeira vez quanto sentira falta da Creek se fosse expulso. Olhei para o galho do Takumi, aprumado na lama, e disse:
— Juro por Deus que não vou dedurar ninguém.
Então finalmente compreendi o que tinha acontecido no Júri naquele dia: Alasca quisera nos mostrar que podíamos confiar nela. A sobrevivência em Culver Creek dependia da lealdade, e ela tinha ignorado isso. Mas, depois ela me mostrara o caminho. Ela e o Coronel levaram a culpa por mim para me mostrar como se fazia, para que eu soubesse o que fazer quando chegasse a hora.

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