quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Sete dias depois

PASSEI O DIA SEGUINTE NO QUARTO, jogando futebol americano com o som da tevê desligado, ao mesmo tempo incapaz de não fazer nada e incapaz de fazer qualquer coisa por muito tempo. Era o dia de Martin Luther King, nosso último dia de férias antes de as aulas recomeçarem, e a única coisa em que eu conseguia pensar era que eu a tinha matado. O Coronel me fez companhia pela manhã, mas depois resolveu ir para o refeitório comer bolo de carne.
— Vamos, — ele disse.
— Estou sem fome.
— Você precisa se alimentar.
— Quer apostar? — perguntei sem tirar os olhos do jogo.
— Santo Deus! Está bem, então. — Ele soltou um suspiro e saiu batendo a porta. Continua bastante zangado, pensei, sentindo um pouco de pena. Não havia motivo para ficar zangado. A raiva só nos distraía da tristeza onipresente e do fato inegável de que nós a tínhamos matado e privado de um futuro e de uma vida. Ficar zangado não consertaria as coisas, porra.
— Como estava o bolo de carne? — perguntei para o Coronel quando ele voltou.
— Do jeito que você se lembra. Não parece nem bolo nem carne. — O Coronel se sentou ao meu lado. — O Águia almoçou comigo. Quis saber se tínhamos disparado as bombinhas. — Pausei o jogo e me virei para ele. Com uma das mãos, ele arrancou um dos últimos pedaços de couro sintético azul do sofá de espuma.
— E o que foi que você disse? — perguntei.
— Não dedurei ninguém. Ele falou que a tia da Alasca, eu acho, vinha esvaziar o quarto amanhã. Então, se houver algo que seja nosso ou que a tia não gostaria de ver...
Voltei-me para o jogo e disse: — Não quero fazer isso hoje.
— Então faço sozinho, — ele respondeu. Virou-se e saiu do quarto, deixando a porta aberta, e o frio amargo do inverno rapidamente venceu o radiador. Pausei o jogo e me levantei para fechar a porta. Quando espiei para fora, querendo ver se o Coronel tinha entrado no quarto da Alasca, dei com ele parado na frente do quarto. Puxou-me pelo moletom, sorriu e disse: — Eu sabia que você não ia me deixar fazer isso sozinho. Sabia. — Balancei a cabeça e revirei os olhos, mas fui atrás dele, caminhando pela calçada, passando pelo telefone público e entrando no quarto dela.
Eu não tinha pensado em seu cheiro depois que ela morreu. Mas, quando o Coronel abriu a porta, peguei um resquício de seu odor: terra e grama molhadas, fumaça de cigarro e, por trás disso, um vestígio de creme para pele com aroma de baunilha. Ela se derramou sobre meu presente, e só o bom-senso me impediu de enfiar o rosto no cesto cheio de roupas sujas perto da cômoda. Tudo estava como em minhas lembranças: centenas de livros empilhados contra as paredes, o edredom cor de alfazema amarrotado ao pé da cama, uma pilha de livros erguendo-se perigosamente na mesa de cabeceira, a vela vulcânica aparecendo debaixo da cama. Tudo estava como eu imaginava, mas o cheiro, inequivocamente seu, pegou-se desprevenido. Fiquei de pé, no centro do quarto, com os olhos fechados, inspirando lentamente pelo nariz, o aroma de baunilha e a grama virgem de outono, mas cada vez que eu inspirava, o cheiro enfraquecia à medida que eu me acostumava com ele, até que por fim, ela sumiu novamente.
— Isso é insuportável, — eu disse, desanimado, pois era verdade. — Santo Deus! Todos estes livros que ela nunca vai ler. A Biblioteca da Vida dela.
— Comprados em vendas de garagem e, agora, provavelmente, destinados a vendas de garagem.
— Das cinzas às cinzas. Das vendas de garagem às vendas de garagem, — eu disse.
— Certo. Vamos lá. Mãos à obra. Pegue tudo o que a tia dela não gostaria de ver, — o Coronel disse, e eu o vi se ajoelhar perto da escrivaninha, a gaveta debaixo do computador aberta, seus pequenos dedos manuseando os montes de folhas grampeadas. — Meu Deus, ela guardava todos os trabalhos. Moby Dick. Ethan Frome.
Procurei debaixo do colchão pelos preservativos que eu sabia que ela guardava para as visitas do Jake. Coloquei-os no bolso, depois fui até a cômoda e revirei sua roupa íntima à procura de garrafas de bebida, brinquedos eróticos ou sei lá o quê. Não encontrei nada. Então me voltei para os livros, empilhados de lado, a lombada para fora, o amontoado de literatura que era a Alasca. havia um livro em especial que eu queria levar, mas não conseguia encontrá-lo.
O Coronel estava sentado no chão, inclinando a cabeça para olhar debaixo da cama.
— Ela não deixou nenhuma garrafa de bebida, não é verdade? — perguntou.
Eu quase disse: Ela enterrava as garrafas na floresta, perto do campo de futebol, então me dei conta de que o Coronel não sabia. Ela não o tinha levado até a orla da floresta para cavar um tesouro escondido. Só eu e ela conhecíamos esse segredo. Guardei isso comigo como um suvenir, como se a lembrança pudesse se dissipar se eu a compartilhasse com mais alguém.
— Está vendo O general no seu labirinto? — perguntei enquanto corria os olhos pelos títulos na lombada dos livro. — A capa é meio verde, eu acho. O livro é em brochura e foi molhado, então as páginas devem estar inchadas, mas não acho que ela...
Então ele me interrompeu: — Certo, está aqui.
Voltei-me para ele e vi o livro em sua mão, as páginas abertas como uma sanfona azul, da cor dos cabelos de Longwell, Jeff e Kevin. Caminhei em sua direção, peguei o livro e me sentei na cama. Os trechos sublinhados e as anotações feitas por ela estavam borrados por causa da inundação, mas boa parte do livro continuava legível. Estava pensando em levá-lo para o quarto para ler, embora fosse uma biografia, quando deparei com aquela página no final:
'Estremeceu diante da revelação de que a corrida arrojada entre seus males e seus sonhos estava chegando ao fim. O resto eram trevas. — Droga, —  ele suspirou. — Como sairei deste labirinto?'
Toda a passagem tinha sido sublinhada em tinta preta ensopada que, agora, parecia se esvair em sangue. Mas havia outra tinta, uma tinta azul mais nítida, pós-inundação, e uma seta que ligava "Como sairei deste labirinto?" a uma nota no rodapé com sua letra cursiva: rápida e diretamente.
— Olha só, ela escreveu uma coisinha depois da inundação, — eu disse. — Mas é estranho. Olha. Página cento e noventa e dois.
Joguei o livro para o Coronel. Ele o folheou até encontrar a página, depois olhou para mim.
— Rápida e diretamente, — ele disse.
— Estranho, não? Acho que é a saída do labirinto.
— Calma, como foi que aconteceu? O que aconteceu?
E, como só tinha acontecido uma coisa, eu sabia o que ele estava falando.
— Já lhe disse o que o Águia me contou. Um caminhão derrapou e bloqueou a pista. A polícia apareceu para organizar o trânsito, e ela bateu na viatura. Estava tão bêbada que nem ao menos desviou.
— Tão bêbada? Tão bêbada? O carro da polícia devia estar com o pisca-alerta ligado. Gordo, ela bateu numa viatura com o pisca-alerta ligado, — ele disse depressa. — Rápida e diretamente. Rápida e diretamente. Para fora do labirinto.
— Não, — eu disse, mas enquanto dizia, imaginei a cena em minha cabeça. Imaginei-a bastante bêbada e nervosa. (Por que? Por ter traído o Jake? Por ter me magoado? Por gostar mais de mim do que dele? Ou por ter dedurado a Marya?) Imaginei-a olhando para o carro da polícia e acelerando, sem se importar com mais ninguém, nem com a promessa que me fez, nem com seu pai, nem com ninguém. Aquela vagabunda, aquela vagabunda se matou. Mas não. Isso não era de seu feitio. Não. Ela disse que Continuaríamos depois. Não, claro que: — Não.
— É, acho que você tem razão, — o Coronel disse. Largou o livro, sentou-se na cama ao meu lado e mergulhou a testa nas mãos espalmadas. — Quem é que sai do campus e dirige por dez quilômetros para depois se matar? Não faz sentido. Mas 'Rápida e diretamente'. É uma premonição meio esquisita, não acha? Além disso, ainda não sabemos ao certo o que aconteceu, se você parar para pensar. Aonde ela esta indo, por quê. Quem ligou. Alguém ligou, não foi? Ou será que inventei...
O Coronel continuou falando, tentando desvendar o mistério, enquanto eu me abaixava para pegar o livro e procurava a página onde a corrida do general tinha chegado ao fim. Estávamos imersos em nossos próprios pensamentos, a distância entre nós intransponível, e não ouvi o que o Coronel disse, porque estava ocupado demais tentando absorver o último vestígio do cheiro dela, tentando me convencer de que ela não tinha se matado. Eu era o culpado - eu tinha feito aquilo, e o Coronel também. Ele podia tentar escapar com seus mistérios, mas eu sabia, sabia que éramos completa e imperdoavelmente culpados.

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