quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Setenta e seis dias antes

— ESTOU ME SENTINDO MELHOR,  o Coronel me disse no nono dia de dilúvio quando se sentou ao meu lado na aula de Religião. — Tive uma epifania. Você se lembra da noite em que ela apareceu no nosso quarto agindo com uma megera?
— Sei. A ópera. A gravata dos flamingos.
— Isso.
— O que é que tem? — perguntei.
O Coronel pegou um caderno de espiral, cuja parte de cima estava ensopada, e o folheou até encontrar o que queria.
— Foi essa a epifania. Ela é uma megera.
Hyde entrou mancando, apoiando-se pesadamente numa bengala preta. Enquanto se dirigia para a cadeira, observou com rispidez: — Meu joelho ruim está me dizendo que poderemos ter chuva. Então, estejam avisados. — Parou de costas para a cadeira, inclinou-se cuidadosamente para trás, agarrou-se com as duas mãos e desabou em cima dela com uma série de respirações rápidas e curtas – como uma mulher em trabalho de parto.
— Hoje, vocês receberão o tema do trabalho deste semestre, embora falte mais de dois meses para a entrega. Bem, estou certo de que todos leram a ementa do curso tantas vezes e com tamanha seriedade que já sabem de cor. — Ele deu um sorriso afetado. — Mas um aviso: o trabalho vale metade da nota final. Sugiro que o levem a sério. Agora, voltando para o tal Jesus...
Hyde falou sobre o Evangelho de São Marcos, que eu só fui ler na véspera, embora fosse cristão. Eu acho. Tinha ido á Igreja bem umas quatro vezes. O que era mais do que eu tinha ido a uma mesquita ou a uma sinagoga.
Ele nos disse, no século primeiro, por volta dos tempos de Jesus, algumas moedas traziam a efígie do Imperador Otávio Augusto com a legenda Filius Deis. Filhos de Deus.
— Estamos falando, — ele disse, — de um tempo em que os deuses tinham filhos. Não era tão estranho ser filho de Deus. O milagre, pelo menos naquela época e naquele lugar, foi Jesus – um camponês, um judeu, um ninguém, num império governado exclusivamente por alguéns – era filho daquele Deus, o deus todo-poderoso de Abraão e Moisés. O filho daquele Deus não era imperador. Nem mesmo rabino. Era um camponês judeu. Um ninguém, como nós. Enquanto Buda era especial porque tinha rejeitado a riqueza e o berço nobre para buscar a iluminação, Jesus era especial porque não tinha nem uma coisa nem outra. No entanto, recebeu o título supremo de Rei dos Reis. Acabou a aula. Peguem uma cópia do trabalho final antes de saírem. Não apanhem chuva. — Quando me levantei para sair, reparei que Alasca não tinha ido à aula. Como ela podia faltar à única aula que prestava? Peguei uma cópia do trabalho final pra ela.
O trabalho final: Qual a pergunta mais importante que os seres humanos devem responder? Escolha a pergunta com sabedoria e analise como o islamismo, o budismo e o cristianismo tentam respondê-la.
— Espero que o pobre-diabo viva até o fim do ano, — o Coronel disse enquanto corríamos na chuva a caminho do dormitório, — porque estou começando a gostar da aula dele. Para você, qual é a pergunta mais importante?
Depois de correr por trinta segundos, eu já estava sem fôlego.
— O que...acontece...depois...da morte?
— Credo, Gordo, é melhor você parar de correr, senão vai acabar descobrindo. — Ele diminuiu o passo, e começamos a caminhar.
— Minha pergunta é: porque as pessoas boas se dão mal na vida? Puta que pariu, aquela é Alasca?
Ela estava correndo a toda velocidade em nossa direção, e estava gritando, mas, por causa da chuva pesada, só consegui ouvi-la quando ela chegou perto o bastante para vermos as gotas de saliva saltando de sua boca.
— Aqueles desgraçados inundaram meu quarto. Estragaram bem uns cem livros. Foram aqueles malditos Guerreiros de Dia de Semana. Coronel, eles fizeram um buraco na calha, conectaram um tubo de plástico ao buraco e puxaram o tubo até meu quarto, passando pela janela dos fundos! Molhou tudo! Meu exemplar de O general no seu labirinto está completamente estragado.
— Bem pensado — o Coronel disse, como um artista admirando o trabalho do outro.
— Ei! — ela gritou.
— Desculpa. Não se preocupe, — ele disse. — Deus punirá os perversos. E, antes que Eles os puna, nós os puniremos.

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