quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Três dias antes

NA SEXTA-FEIRA, depois de uma surpreendente prova de Pré-Cálculo que encerrou com chave de ouro minha primeira leva de notas em Culver Creek, coloquei na mochila o meu saco de dormir e algumas roupas (“Leve algo bem nova-iorquino”, aconselhara-me o Coronel. “Algo preto, sensato, confortável e quente”), buscamos o Takumi em seu quarto e fomos até a casa do Águia. O Águia estava usando seu único modelito, e eu me perguntei se ele teria trinta camisas brancas idênticas e trinta gravatas pretas idênticas em seu closet. Imaginei-o acordando de manhã, olhando para o closet e pensando.
Hummm... humm... que tal uma camisa branca e uma gravata preta? O cara estava precisando urgentemente de uma esposa.
— Vou levar o Miles e o Takumi para passar o fim de semana lá em casa em New Hope, — o coronel lhe disse.
— O Miles gostou tanto assim de New Hope? — o Águia me perguntou.
— Yeehaw! Vamos juntar os caipiras no camping! — disse o Coronel. Ele sabia falar com sotaque quando queria, mas, como todos em Culver Creek, preferia não usá-lo.
— Um monte. Vou ligar para a sua mãe, — o Águia disse para o Coronel.
Takumi olhou para mim tentando inutilmente disfarçar o pânico, e eu senti o almoço – galinha frita – revirar em meu estômago. Mas o Coronel apenas sorriu. — Claro.
— O Chipe, o Miles e o Takumi vão passar o fim de semana na casa da senhora?... Sim, senhora... Há!... Tudo bem. Tchau. — O Águia olhou para o Coronel. — Sua mãe é uma mulher incrível. — E sorriu.
— E eu não sei? — O Coronel abriu um sorriso forçado. — Então nos vemos no domingo.
Enquanto caminhávamos para o estacionamento do ginásio, o Coronel disse: — Liguei para ela ontem e pedi para me acobertar. Ela nem mesmo quis saber o motivo. Disse apenas: ‘Confio em você, meu filho’, e confia mesmo. — Longe dos olhos do Águia, dobramos rapidamente para a direita e entramos na floresta.
Percorremos a estrada de terra, atravessamos a ponte, depois voltamos para o celeiro da escola, um armazém dilapidado, propenso a goteiras, que mais parecia uma cabana de madeiras. Mesmo assim, estocavam feno ali dentro, não sei por quê. Não tínhamos aula de equitação nem nada parecido. O Coronel, Takumi e eu chegamos lá primeiro e estendemos nossos sacos de dormir sobre os fardos de feno mais macios. Eram 18:30hrs.
Alasca chegou logo depois, tendo dito a Águia que iria passar o fim de semana com Jake. O Águia não precisou verificar a história, porque Alasca costumava passar um fim de semana por mês com o namorado, e ele sabia que seus pais não se importavam. Lara apareceu meia hora depois. Tinha dito ao Águia que iria de carro para Atlanta para visitar uma amiga da Romênia. O Águia ligou para os seus pais para se certificar de que eles sabiam que a filha iria passar o fim de semana fora do campus, eles não se importaram.
— Confiam em mim. — Ela sorriu.
 As vezes nem parece que você tem sotaque - eu disse, o que era uma tolice, mas era bem melhor do que vomitar nela.
 São apenas alguns sóóins.
— É diferente em russo? — perguntei.

— Em romééno, — ela me corrigiu. Aparentemente o romeno era um idioma. Quem iria saber? Meu quociente de sensibilidade cultural teria de aumentar drasticamente se eu quisesse dividir o saco de dormir com ela em breve.
Estávamos sentados em nossos sacos de dormir. Alasca estava fumando com flagrante descaso pela indiscutível inflamabilidade do celeiro, quando o Coronel pegou uma folha impressa no computador e começou a ler em voz alta.
— O objetivo da festividade dessa noite é provar, de uma vez por todas, que nós estamos para o trote assim como os Guerreiros de Dia de Semana estão para a burrice. Mas também teremos a oportunidade de tornar a vida do Águia mais difícil, o que é sempre um prazer muito bem-vindo. Então, — ele disse, pausando como se esperasse ouvir o rufar dos tambores, — vamos lutar uma batalha em três frentes essa noite:
Primeira frente – pré-trote. Vamos fazer fumaça debaixo do nariz do Águia.
Segunda frente – operação careca. Na qual a Lara vai invadir o território inimigo, sozinha, numa missão retaliativa tão inteligente e cruel que só poderia ter sido concebida por uma mente genial como, bem, a minha.
— Ei! — Alasca interrompeu. — A ideia foi minha.
— Certo. A ideia foi da Alasca. — Ele riu. — E, por fim, terceira frente – os relatórios de progresso. Vamos invadir a rede de computadores da escola e usar o sistema de dados para enviar cartas para os familiares do Kevin & Cia. Dizendo que eles serão reprovados em algumas matérias.
— Com certeza, vamos ser expulsos, — eu disse.
— Espero que não tenham trazido o garoto asiático pensando que ele é um gênio da computação. Porque eu não sou. — Takumi disse.
— Não vamos ser expulsos, e eu sou o gênio da computação. Vocês são apenas os músculos e a distração. Não vamos ser expulsos nem mesmo se formos pegos, porque nada disso é punível com expulsão – bem, exceto, talvez as cincos garrafas de Strawberry Hill na mochila da Alasca, mas isso ficará bem escondido. Só estamos fazendo uma devastaçãozinha.
O plano foi explicado e não tinha margem de erro. O Coronel esperava uma sincronia tão perfeita que, se um de nós fizesse uma pequena besteira, todo o projeto viria abaixo.
Ele tinha imprimido cronogramas individuais para cada um de nós, com marcações de tempo precisas que levavam em conta os segundos. Com os relógios sincronizados, as roupas pretas, as mochilas nas costas, a respiração condensando na noite fria, os detalhes do plano na cabeça, o coração disparando, saímos do celeiro depois de anoitecer, por volta das sete. Nós cinco caminhávamos um ao lado do outro, confiantes, e eu nunca me senti tão legal. O Grande Talvez pairava sobre nós, mas éramos invencíveis. O plano podia ter falhas, nós não.
Cinco minutos depois, o grupo se dividiu, e cada um foi para onde tinha de ir. Eu fiquei com o Takumi. Nós éramos a distração.
— Porra. Somos fuzileiros, — ele disse.
— Primeiro a lutar, primeiro a morrer, — concordei, nervoso.
— É isso aí, porra!
Ele parou a abriu a mochila.
— Aqui não, cara, — eu disse. — Tem de ser na casa do Águia.
— Eu sei, eu sei. Calma. — Ele pegou uma touca grossa. Era marrom, com uma cabeça de raposa de pelúcia na frente. Colocou-a na cabeça.
Eu ri. — Mas que diabos é isso?
— Meu chapéu de raposa.
— Chapéu de raposa?
— É, Gordo. Meu chapéu de raposa.
— Por que vestiu o chapéu de raposa? — perguntei.
— Porque ninguém pega a maldita raposa.
Dois minutos depois, estávamos agachados atrás das árvores a quinze metros da porta dos fundos da casa do Águia. Meu coração pulsava como uma batida de música eletrônica.
— Trinta segundos, — Takumi sussurrou, e eu senti a mesma ansiedade incômoda que tinha sentido naquela primeira noite com a Alasca, quando ela pegou a minha mão e sussurrou corre, corre, corre, corre, corre. Mas permaneci parado.
Pensei: Nós estamos perto o bastante.
Pensei: Ele não vai ouvir.
Pensei: Ele vai ouvir e vai sair de casa tão depressa que não teremos a menos chance.
Pensei: Vinte segundos.
— Ei, Gordo, — sussurrou Takumi, — você consegue cara. É só correr.
— Certo. — É só correr. Meu joelhos são bons. Meus pulmões funcionam. É só correr.
— Cinco, — ele disse. — Quatro. Três. Dois. Um. Acende. Acende. Acende.
Acendi e ouvi um chiado que me fez lembrar os feriados de Quatro de Julho passados com a minha família. Ficamos parados por um nanossegundo, olhando para o rastilho para ter certeza de que continuava aceso. E agora, pensei. Corre, corre, corre, corre, corre.
Mas meu corpo não se mexeu até eu ouvir o Takumi gritando aos sussurros: — Vai, vai, vai, vai, porra!
E nós fomos.
Três segundos depois, uma enorme explosão de estampidos. Para mim. Mais pareciam os tiros de metralhadora de Decapitação, só que mais altos. Já estávamos a uns vinte passos de distância, e pensei que meus tímpanos fossem explodir.
Pensei: Bem, ele certamente vai ouvir isso.
Atravessamos o campo de futebol às carreiras, entramos na floresta e subimos em declive, com apenas um vago senso de direção. No escuro, os galhos partidos e as pedras cobertas de musgo surgiam no último segundo possível, e eu caí e escorreguei tantas vezes que tive medo de que o Águia pudesse nos alcançar, mas continuei me levantando e correndo ao lado do Takumi, para longe das salas de aula e do círculo de dormitórios. Corríamos como se tivéssemos sandálias de ouro. Eu corria como um guepardo – bem, como um guepardo que fumava demais. Então, depois de exatamente um minuto de corrida, Takumi parou e abriu a mochila.
Era minha vez de contar. Olhando para o relógio. Apavorado. Àquela altura, ele certamente já teria saído. Estaria correndo. Indaguei-me se ele seria veloz. Era velho, mas estava furioso.
— Cinco, quatro, três, dois, um, — e o chiado. Não paramos dessa vez, simplesmente corremos, ainda para o oeste. Arfando. Eu me perguntei se conseguiria fazer aquilo por trinta minutos. As bombinhas explodiram.
Os estampidos cessaram, e uma voz gritou: — PAREM JÁ COM ISSO! — Mas não paramos. Parar não estava no plano.
— Eu sou a maldita raposa, — Takumi sussurrou, tanto para si mesmo quanto para mim. — Ninguém pega a raposa.
Um minuto depois, eu estava ajoelhado. Takumi fez a contagem regressiva. O rastilho acendeu. E nós corremos.
Mas as bombinhas não explodiram. Tínhamos trazido um cordão de bombinhas sobressalentes para o caso de uma eventual falha. Outra, no entanto, custaria um minuto para o Coronel e a Alasca. Takumi se agachou, acendeu o rastilho e correu. Os estampidos começaram. As bombinhas fizeram bangbangbang em sincronia com meu coração.
Quando o barulho cessou, ouvi:
— PAREM COM ISSO OU EU VOU CHAMAR A POLÍCIA! — E, embora a voz estivesse longe, eu sentia seu Olhar do Juízo-Fina sobre mim.
— Não peguem a raposa; vão ficar para trás, — Takumi disse para si mesmo. — Faço rima até correndo; sou demais.
O Coronel tinha nos prevenido sobre a questão da polícia, disse que não precisaríamos nos preocupar. O Águia não gostava de trazer os tiras para o campus. Publicidade negativa. Então continuamos correndo. Passando por cima e por baixo de todo tipo de árvore, arbusto e galho. Caíamos. Levantávamos. Corríamos. Se ele não conseguisse nos seguir pelos estampidos, certamente poderia nos seguir pela sucessão de merdas! Enquanto tropeçávamos mortos e caímos em cima de arbustos espinhosos.
Um minuto. Eu me ajoelhei, acendi um rastilho, corri. Bang.
Dobramos para o norte, achando que tínhamos passado pelo lago. Era parte essencial do plano. Quanto mais nos afastássemos sem sair dos limites do campus, mais o Águia teria de se afastar para nos perseguir. Quanto mais ele nos perseguisse, mais longe ficaria das salas de aula, onde o Coronel e a Alasca estavam fazendo seu showzinho. Depois pretendíamos dar a volta perto das salas de aula e seguir para o leste, ao longo do regato, até chegarmos à ponte sobre o Buraco do Fumo, de onde pegaríamos a estrada novamente e voltaríamos para o celeiro, triunfantes.
Eis o problema: tínhamos cometido um pequeno erro de cálculo. Não tínhamos passado pelo lago; pelo contrário, estávamos correndo na direção de um campo aberto e, depois, do lago. Perto demais das salas de aula para tomar outro rumo, seguimos para o lago. Olhei para o Takumi, que corria ao meu lado passo a passo, e ele disse: — Acende.
Então me ajoelhei, acendi o rastilho, e corremos. Estávamos correndo por uma clareira agora. Se o Águia estivesse atrás de nós, poderia nos ver. Chegamos à margem sul e começamos a contornar o lago. Não era assim tão grande – talvez uns quinhentos metros de extensão. Já estávamos quase no fim quando eu o vi.
O cisne.
Nadando em nossa direção como um cisne endiabrado, batendo as asas furiosamente. Depois chegou à praia e se colocou em nosso caminho, fazendo um barulho que não se parecia com nada deste mundo, algo como as piores partes dos últimos gemidos de um coelho e as piores partes do choro de um bebê. Não tínhamos para onde ir, continuamos correndo. Atropelei o cisne a toda velocidade e senti uma mordida na bunda. Então comecei a mancar visivelmente, porque minha bunda estava pegando fogo, e pensei comigo: Que diabos o cisne tem na saliva que arde tanto?
O trigésimo terceiro cordão de bombinhas falhou, custando-nos um minuto. Àquela altura, eu queria um minuto. Estava morrendo. A sensação de ardência em minha nádega esquerda tinha diminuído e se transformado numa dor forte que aumentava cada vez que eu pisava com a perna esquerda, de modo que eu estava correndo como uma gazela ferida tentando fugir de um bando de leões. Diminuímos o passo consideravelmente, é claro. Tínhamos parado de ouvir a voz do Águia depois que atravessamos o lago, mas não achava que ele tivesse desistido. Só estava tentando nos enganar com sua complacência, mas não daria certo. Naquela noite, éramos invencíveis.
Exaustos, paramos para descansar ainda com três cordões de bombinha, esperando ter dado tempo suficiente para o Coronel. Depois corremos por mais alguns minutos até chegarmos à margem do regato. A noite estava tão escura e estagnada que o pequeno filete de água parecia rugir, e eu podia escutar nossa respiração ofegante enquanto desabávamos na margem enlameada e coberta de seixos. Quando paramos, olhei para o Takumi. Suas faces e seus braços estavam arranhados, a cabeça de raposa estava acima de sua orelha esquerda. Olhei para os meus braços e reparei no sangue que escorria dos cortes mais profundos. Tínhamos passado por arbustos espinhosos, lembrei, mas eu não sentia dor alguma.
Takumi estava tirando os espinhos da perna.
— A raposa está muito cansada, — ele disse e riu.
— O cisne mordeu minha bunda, — eu lhe disse.
— Eu vi. — Ele sorriu. — Está sangrando? — Enfiei a mão dentro da calça para verificar. Não havia sangue, então acendi um cigarro para comemorar.
— Missão cumprida, — eu disse.
— Gordo, meu amigo, somos indestrutíveis.
O regato serpeava pelo campus tantas vezes que não tínhamos como saber onde estávamos, então seguimos o curso-d’água por cerca de dez minutos, levando em conta que teríamos nos movido duas vezes mais rápido enquanto corríamos, e dobramos à esquerda.
— O que você acha? Esquerda? — perguntou Takumi.
— Estou completamente perdido, — eu disse.
— A raposa está apontando para a esquerda. Então, esquerda. — E a raposa nos levou de volta para o celeiro.
— Vocês estão béém? — Lara disse, quando demos as caras. — Eu fiquei preocupada. Vi o Águia sair de casa. Estava de pijama. Parecia furioso.
Eu disse: — Se ele estava furioso, não quero nem ver como ficou agora.
— Por que demoraram tanto? — ela perguntou.
— Voltamos pelo caminho mais longo, — Takumi disse. — Além disso, Gordo está andando feito uma velhinha com hemorroidas porque o cisne mordeu a bunda dele. Cadê a Alasca e o Coronel?
— Não sei, — disse Lara, então ouvimos passos a distância, sussurros e galhos se partindo. Rápido como um relâmpago, Takumi pegou os sacos de dormir e as mochilas e os escondeu atrás do feno. Nós três saímos pelos fundos do celeiro, entramos no capinzal alto, que batia à altura do peito, e nos deitamos. Ele nos rastreio até o celeiro, eu pensei. Fizemos tudo errado.
Então ouvi a voz do Coronel, distinta e bastante aborrecida:
— Isso reduz em vinte e três nomes a lista de possíveis suspeitos! Por que não seguiu o plano? Santo Deus, cadê todo mundo?
Voltamos para o celeiro, um pouco envergonhados por termos reagido de maneira tão exagerada. O Coronel se sentou num fardo de feno, os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça baixa, as mãos empunhadas na testa. Pensando.
— Bem, pelo menos, ainda não fomos pegos. Certo, primeiro, — ele disse sem olhar para cima, — me digam que todo o resto correu bem. Lara?
Ela começou a falar. — Da. Tudo certo.
— Pode me dar mais detalhes, por favor?
— Fiz tudo que dizia no papel. Eu me escondi atrás da casa do Águia e esperei até ele sair atrás do Miles e do Takumi. Depois corri para os fundos do dormitório. Entrei pela janela do quarto do Kevin. Coloquei o negócio no gel e no condicionador, depois fiz o mesmo no quarto do Jeff e do Longwell.
— Que negócio? — perguntei.
— Tinta industrial azul não diluída número cinco para cabelo, — Alasca disse. — Comprei com seu dinheiro dos cigarros. Basta aplicar no cabelo molhado, e a coisa não sai por meses e meses.
— Nós tingimos o cabelo deles de azul?
— Bem, tecnicamente, — o Coronel disse, ainda falando para baixo, — eles é que vão tingir o cabelo de azul. Mas nós ajudamos, é verdade. Sei que tudo correu bem com você e Takumi, porque nós estamos aqui e vocês estão aqui, então significa que fizeram seu trabalho. A boa notícia é que os três palermas que tiveram a audácia de nos pregar um trote vão receber relatórios de progresso informando que eles repetiram em três matérias.
— Uh-oh. Qual é a má notícia? — perguntou Lara.
— Ah, sai dessa, — disse Alasca. — A outra boa notícia é que, enquanto o Coronel se escondia no mato, pensando ter ouvido alguma coisa, eu me lembrei de mandar relatórios para outros vinte Guerreiros de Dia de Semana. Imprimi boletins para todos eles, coloquei em envelopes timbrados da escola e deixei na caixa de correio. — Ela se virou para o Coronel. — Você demorou bastante, — disse. — O Coronelzinho... tem medo de ser expulso.
O Coronel ficou de pé, erguendo-se acima de todos nós, que estávamos sentados.
— Não é uma boa notícia! Não estava no plano! Agora o Águia pode riscar vinte e três nomes da lista de suspeitos. Vinte e três pessoas que podem descobrir que fomos nós e nos dedurar!
— Se isso acontecer, — disse Alasca, muito séria, — eu assumo a culpa.
— Claro. — O Coronel suspirou. — Como você fez com o Paul e a Marya. Vai dizer que estava passeando pela floresta, soltando bombinhas ao mesmo tempo que invadia a rede de computadores da escola e imprimia relatórios falsos em papel timbrado? Tenho certeza de que o Águia vai acreditar!
— Calma, cara, — disse Takumi. — Primeiro, não vamos ser pegos. Segundo, se formos pegos, vou assumir a culpa com a Alasca. Você tem mais a perder do que nós. — O Coronel assentiu com a cabeça. Era um fato inegável: o Coronel não teria a menos chance de ganhar uma bolsa em outra escola se fosse expulso de Culver Creek.
Sabendo que nada o deixava mais animado do que ser reconhecido por seu brilhantismo, perguntei: — Como foi que você invadiu o sistema?
— Entrei pela janela da sala do Sr. Hyde, liguei o computador e digitei a senha, — ele disse, sorrindo.
— Adivinhou a senha?
— Não. Na terça-feira, fui até a sala dele para pedir uma cópia impressa da bibliografia do curso. Então fiquei de olho quando ele digitou a senha: J3ckylnhyd3.
— Porra, — disse Takumi. — Eu podia ter feito isso.
— É, mas não teria tido chance de usar esse seu chapéu engraçado, — o Coronel disse rindo. Takumi tirou a touca e a colocou na mochila.
— O Kevin vai ficar furioso quando vir o cabelo, — eu disse.
— Bem, eu também fiquei furiosa quando vi minha biblioteca alagada. O Kevin é uma boneca inflável, — disse Alasca. — Se você nos espeta, nós sangramos. Se espeta o Kevin, ele estoura.
— É verdade, — Takumi disse. — O cara é um idiota. Ele meio que tentou matar você, lembra?
— É, achou que sim, — reconheci.
— Tem muita gente assim nesta escola, — continuou Alasca, ainda bufando. — Sabe? Esse malditos garotos-riquinhos-infláveis.
Embora Kevin meio que estivesse tentando me matar e tudo mais, ele não me parecia digno de raiva. Odiar os garotos legais exigia muita energia, e eu tinha desistido disso fazia tempo. Para mim, o trote fora apenas uma resposta a um trote anterior, apenas uma oportunidade de ouro para fazer uma devastaçãozinha, como dissera o Coronel. Mas, para Alasca, parecia outra coisa, parecia algo mais.
Eu queria lhe perguntar sobre isso, mas ela se deitou atrás de um fardo de feno e tornou a ficar invisível. Alasca tinha terminado de falar, era o fim da conversa. Só fomos chamá-la duas horas depois, quando o Coronel abriu a garrafa de vinho. Passamos a garrafa de mão em mão até que eu comecei a sentir a bebida no estômago, amarga e quente.
Eu queria gostar de beber mais do que de fato gostava (o que era exatamente o oposto do que eu sentia em relação a Alasca). Mas, naquela noite, a bebida produziu uma sensação muito boa enquanto o calor do vinho se espalhava do estômago para o resto do meu corpo. Não gostava de me sentir burro ou fora de controle, mas gostava do modo como o álcool deixava tudo (os risos, o choro, o xixi na frente dos amigos) mais fácil. Por que estávamos bebendo? Para mim, era apenas uma distração, até porque corríamos sérios riscos de sermos expulsos. O lado bom da constante ameaça de ser expulso de Culver Creek é que isso reveste cada prazer ilícito com uma aura de empolgação. O lado ruim é que sempre há a possibilidade de você ser expulso, é claro

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