quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Treze dias depois

COMO NOSSA PRINCIPAL FONTE de transporte automotivo estava enterrada em Vine Station, Alabama, o Coronel e eu fomos forçados a caminhar até a Delegacia de Pelham à procura de testemunhas oculares. Saímos depois de termos jantado no refeitório, a noite caindo rápida e prematuramente, e caminhamos pela Rodovia 119 por cerca de dois quilômetros até chegarmos a um edifício de estuque de um só andar localizado entre uma Casa do Waffle e um posto de gasolina.
Lá dentro, uma longa bancada que batia à altura do plexo solar do Coronel nos separava da delegacia propriamente dita, que parecia consistir em três policiais uniformizados falando ao telefone, cada qual em sua escrivaninha.
— Sou o irmão de Alasca Young, — o Coronel anunciou corajosamente. — Quero falar com o policial que a viu morrer.
Um homem magro e pálido com uma barba louro-avermelhada falou apressadamente ao telefone e desligou.
— Eu vi a garota, — ele disse. — Ela bateu na minha viatura.
— Podemos falar lá fora? — o Coronel perguntou.
— Claro.
O policial pegou um casaco e caminhou em nossa direção, e, quando ele chegou mais perto, reparei nas veias azuis sob a pele transparente de seu rosto. Para um policial, ele não parecia sair muito. Do lado de fora, o Coronel acendeu um cigarro.
— Você não tem dezenove anos, tem? — o policial perguntou, No Alabama, você pode se casar aos dezoito (ou aos catorze, com a permissão da mamãe e do papai), mas precisa ter dezenove anos para poder fumar.
— Então me prenda. Só quero saber o que você viu.
— Eu costumo trabalhar das seis à meia-noite, mas, naquele dia, eu estava cobrindo o turno da madrugada. Recebi uma chamada a respeito do um caminhão que tinha derrapado na pista. Eu estava a um quilômetro e meio dali então me encaminhei para o local e encostei a viatura. Ainda estava dentro do carro, quando vi pelo canto do olho um farol aceso. Eu estava com as luzes acesas e a sirene ligada, mas o farol continuou vindo na minha direção, filho. Então saltei depressa e saí correndo, e ela simplesmente engavetou atrás de mim. Já vi muita coisa nesta vida, mas nunca tinha visto nada parecido. Ela não desviou. Não pisou no freio. Simplesmente bateu. Eu não estava a mais de três metros do carro quando ela bateu. Pensei que tivesse morrido, mas estou aqui.
Pela primeira vez, a teoria do Coronel me pareceu plausível. Ela não ouviu a sirene? Não viu as luzes? Estava sóbria o bastante para beijar, pensei. Então devia estar sóbria o bastante para desviar o carro.
— Viu o rosto dela antes da batida? Ela estava dormindo? — o Coronel perguntou.
— Isso eu não sei dizer. Não deu pra vê-la. Não deu tempo.
— Entendo. Ela já estava morta quando você chegou? — ele perguntou.
— Eu... Eu fiz tudo o que podia. Corri para ajudá-la, mas o volante... Bem, cheguei lá e tentei afrouxar o volante, mas não havia como tirá-la do carro viva. O peito dela ficou praticamente esmagado, entende?
Estremeci diante da cena.
— Ela disse alguma coisa? — perguntei.
— Estava desmaiada, filho — ele disse, balançando a cabeça e minha última esperança de descobrir suas últimas palavras se esvaíram.
— Acha que foi um acidente? — o Coronel perguntou. Eu estava atrás dele, os ombros curvados, querendo fumar, mas com medo de ser tão audacioso quanto ele.
— Trabalho nesta delegacia há vinte e seis anos eu já vi mais gente bêbada do que vocês podem imaginar, mas nunca vi ninguém tão bêbado que não conseguisse nem sequer tentar desviar o carro. Mas não sei. O médico legista disse que foi um acidente. Pode ter sido. Não é a minha área, sabe? Acho que agora isso é entre ela e Deus.
— Ela estava muito bêbada? — perguntei. — Tipo, fizeram algum teste?
— Fizeram. O nível de álcool em seu sangue era de 0,24%. Ela estava bêbada, sim. Bastante bêbada.
— Viu alguma coisa no carro? — o Coronel perguntou. — Tipo, algo estranho?
— Vi panfletos de universidades — em lugares como Maine, Ohio e Texas. Na hora, pensei, essa garota deve ser de Culver Creek. Que coisa triste, uma garota que queria ir para a faculdade morrer assim. É uma pena. Também vi flores. No banco de trás do carro. Coisa de florista, sabe? Tulipas.
Tulipas? Pensei imediatamente nas tulipas que o Jake tinha mandado para ela.
— Brancas? — perguntei.
— Isso mesmo, — o policial respondeu. Por que ela levaria as tulipas? Mas o policial não saberia responder a essa pergunta.
— Espero que vocês tenham encontrado o que estavam procurando. Eu também andei pensando nisso, porque nunca vi nada parecido. Pensei bastante, fiquei imaginando se ela teria sobrevivido se eu tivesse ligado o carro rapidamente e pisado no acelerador. Talvez tivesse dado tempo. Agora não vou saber. Mas acho que não importa, se foi acidente ou não. De qualquer modo, é uma pena.
— Você não podia ter feito nada, — o Coronel disse suavemente. — Você fez seu trabalho, e nós agradecemos.
— Certo. Obrigado. Podem ir agora. Cuidem-se. E me avisem se tiverem mais alguma pergunta. Levem o meu cartãozinho caso precisem de alguma coisa.
O Coronel guardou o cartãozinho em sua carteira de couro sintético, e voltamos para casa a pé.
— Tulipas brancas, — eu disse. — As tulipas do Jake. Por quê?
— Ano passado, estávamos com o Takumi no Buraco do Fumo, e havia uma pequena margarida branca na margem do regato. Alasca pulou na água de repente, imersa até a cintura, e vadeou o rio só para pegar a florzinha e colocá-la atrás da orelha. Quando perguntei por que tinha feito aquilo, ela me disse que seus pais costumavam colocar flores brancas atrás de sua orelha quando ela era pequena. Talvez quisesse morrer com flores brancas.
— Talvez quisesse devolvê-las para o Jake, — eu disse.
— Talvez. Mas aquele policial me convenceu de que pode ter sido suicídio.
— Talvez devêssemos deixá-la morrer em paz, — eu disse, frustrado. Parecia-me que nada que pudéssemos descobrir seria capaz de melhorar as coisas. E eu não conseguia parar de pensar na imagem do volante carenando em seu peito, "praticamente esmagado”, enquanto ela arfava em busca de uma última respiração que jamais viria. Não, aquilo não melhorava as coisas. — E se ela realmente tiver se matado? — perguntei ao Coronel. — Isso não nos torna menos culpados. Só faz com que ela pareça uma megera malvada e egoísta.
— Credo, Gordo. Ainda se lembra de como ela era? De como às vezes, podia ser uma megera egoísta? Era parte dela. Você sabia disso. Mas, agora, parece que você só se importa com a Alasca que inventou.
Apressei o passo e me adiantei ao Coronel, sem dizer nada. Ele jamais entenderia, porque não tinha sido a última pessoa que ela beijara, porque não fora deixado com uma promessa impossível, porque não era eu. Que se dane, pensei, e pela primeira vez, cogitei voltar para casa e trocar o Grande Talvez pelo conforto familiar dos amigos da escola. Pelo menos, meus amigos da Flórida não morriam.
Quando abri uma distância considerável, o Coronel correu até mim e disse: — Só quero que as coisas voltem ao normal. Entre nós dois. Normal. Divertida, Simplesmente normal. E acho que se descobrirmos...
— Está bem, — eu o interrompi. — Está bem. Vamos continuar procurando.
O Coronel balançou a cabeça, depois sorriu.
— Sempre apreciei seu entusiasmo, Gordo. E vou continuar fingindo que ainda o vejo, até ele voltar. Agora, vamos para casa descobrir por que as pessoas se matam.

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