quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Vinte dias depois

ERA DOMINGO. O Coronel e eu tínhamos decidido não jantar no refeitório. Em vez disso, saímos do campus a pé e atravessamos a Rodovia 119 até a loja de conveniência, onde nos regalamos com uma refeição bem balanceada, composta de duas bolachas com recheio de aveia para cada um. Setecentas calorias. Energia suficiente para alimentar um homem por um dia. Nós nos sentamos na calçada da loja, e terminei meu jantar em quatro mordidas.
— Vou ligar para o Jake amanhã, só estou avisando. Peguei o número dele com o Takumi.
— Tudo bem, — eu disse.
Ouvi um sininho irritante atrás de mim e me virei para a porta da loja.
— Estão de vagabundagem aí, — disse a mulher que tinha nos vendido o jantar.
— Estamos comendo, — o Coronel respondeu.
A mulher balançou a cabeça e nos expulsou como se fôssemos cães. — Xô.
Contornamos a loja e fomos nos sentar perto da lata de lixo fedorenta dos fundos.
— Corta essa de 'Tudo bem', Gordo. Está ficando ridículo. Vou ligar para o Jake amanhã e anotar tudo o que ele disser. Depois vamos nos sentar e tentar descobrir o que aconteceu.
— Não. Você está sozinho nessa. Não quero saber o que aconteceu entre ela e o Jake.
O Coronel bufou e pegou um maço de cigarros-pagos-pelo-Gordo no bolso do jeans. — Por que não?
— Porque não! Será que preciso fazer um relatório completo sobre todas as minhas decisões?
O Coronel acendeu um cigarro com o isqueiro que eu lhe comprei e tragou.
— Que seja. O caso precisa ser solucionado. E eu preciso de você, porque nós dois a conhecíamos muito bem. Então está decidido.
Eu me levantei e o encarei, sentado no chão presunçosamente. Ele soprou um fiozinho de fumaça na minha cara, e eu me descontrolei.
— Já estou cansado de seguir suas ordens, seu babaca! Não vou me sentar com você para discutir os detalhes do relacionamento dela com o Jake. Porra! Não dá pra ser mais claro: Não quero saber sobre eles. Já sei o que ela me disse, e é tudo o que preciso saber. Você pode bancar o babaca arrogante quanto quiser, mas não vou me sentar com você para discutir o quanto ela amava o Jake! Agora me dá meus cigarros! — O Coronel jogou o maço no chão e ficou de pé num piscar de olhos, segurando meu suéter com a mão fechada, tentando inutilmente me trazer para baixo com seu peso.
— Você não se importa com ela! — disse. — Só se importa com essa maldita fantasia de que vocês dois tinham um caso secreto, de que ela ia largar o Jake para ficar com você e viver feliz para sempre. Mas ela beijou um monte de caras, Gordo. E, se ainda estivesse viva, nós dois sabemos que ela seria a namorada do Jake e haveria uma enorme tensão entre vocês dois – nada de amor, nada de sexo, só você morrendo de amores por ela, e ela, tipo: ‘Você é fofo, Gordo, mas eu amo o Jake.’ Se ela realmente amava você, por que o deixou naquela noite? E, se você realmente a amava, por que a deixou ir embora? Eu estava bêbado. Mas e você? Qual é a sua desculpa?
O Coronel soltou meu suéter. Eu me abaixei e catei os cigarros. Sem gritar, sem trincar os dentes e sem veias pulsando na testa, mas calmamente. Calmamente. Olhei para o Coronel e disse:
— Vai se foder.
Os gritos e as veias pulsando vieram mais tarde, depois que eu atravessei correndo a Rodovia 119, o circulo dos dormitórios e o campo de futebol, desci a estrada de terra até a ponte e cheguei ao Buraco do Fumo. Peguei uma das cadeiras azuis e a joguei contra a parede de cimento. O baque metálico do plástico chocando-se contra o concreto ecoou embaixo da ponte. A cadeira caiu de lado, imóvel. Então me deitei de barriga para cima, as pernas balançando no precipício, e gritei. Gritei porque o Coronel era um babaca, orgulhoso e arrogante. Gritei porque ele estava certo, eu realmente queria acreditar que eu tinha tido um caso secreto com a Alasca. Será que ela me amava? Será que teria largado o Jake para ficar comigo? Ou será que aquilo tinha sido apenas mais um de seus momentos impulsivos? Não era o bastante ser seu último beijo. Eu queria ser seu último amor. Mas sabia que não era. Sabia e a odiava por isso. Eu a odiava por não se importar comigo. Eu a odiava por ter me deixado naquela noite. E odiava a mim mesmo por tê-la deixado ir embora, porque, se eu tivesse sido suficiente, ela não teria querido ir embora. Simplesmente teria se deitado comigo, conversado e chorado. E eu a teria ouvido e teria beijado as lágrimas que caíam dos seus olhos.
Virei a cabeça e vi uma das cadeirinhas de plástico azuis tombada de lado. Indaguei-me se chegaria o dia em que não pensaria em Alasca, se deveria ansiar pelo dia em que ela se tomaria uma memória distante – recordada apenas nos aniversários de morte, ou semanas mais tarde, lembrada apenas depois de ter sido esquecida.
Eu sabia que outras pessoas iriam morrer. Os corpos iriam se empilhar. Será que cada um deles teria seu espaço em minha memória ou será que eu esqueceria um pouco da Alasca todos os dias pelo resto da minha vida?
Certa vez, no começo daquele ano, nós dois caminhamos até o Buraco do Fumo, e ela entrou na água de chinelo. Atravessou o regato, pulando com cautela sobre as pedras cobertas de musgo, e pegou um graveto molhado no leito do rio. Enquanto eu observava, sentado no concreto, os pés balançando acima da água, ela revirou as pedras com o graveto e me mostrou os lagostins deslizando pelo chão.
— A gente ferve e depois chupa a cabeça, — disse empolgada. — E a melhor parte — a cabeça.
Ela me ensinou tudo o que eu sabia sobre lagostins, beijos, vinho tinto e poesia. Ela me mudou.
Acendi um cigarro e cuspi no regato.
— Você não pode me mudar e depois ir embora, — disse para ela, em voz alta. — Porque eu estava bem, Alasca. Estava bem, só eu, as últimas palavras e os amigos da escola. Você não pode me mudar e depois morrer.
Pois ela tinha personificado o Grande Talvez – tinha me mostrado que valia a pena deixar minha vidinha e sair em busca de talvezes maiores, mas agora ela estava morta, assim como minha esperança no talvez. Eu podia dizer “Tudo bem” para tudo que o Coronel dizia ou fazia. Podia tentar fingir que não me importava, só que nunca mais seria verdade.
— Você não pode simplesmente se materializar e depois morrer, Alasca, porque agora eu estou irremediavelmente mudado. Sinto muito por tê-la deixado ir, mas você fez sua escolha. Você me deixou carente de talvezes preso à porcaria do seu labirinto. E, agora, nem mesmo sei se você escolher a saída rápida e direta, deixando-me de proposito. Eu nunca a conheci, não é? Não posso me lembrar, pois nunca conheci.
Enquanto me levantava para voltar ao quarto e fazer as pazes com o Coronel, tentei imaginá-la naquela cadeira, mas não consegui me lembrar se ela cruzava as pernas. Ainda podia vê-la sorrindo para mim com seu meio sorriso de Mona Lisa, mas não conseguia me lembrar de suas mãos suficientemente bem para vê-la segurando um cigarro. Eu precisava, decidi, conhecê-la de verdade, pois queria ter mais coisas para lembrar. Antes de começar o vergonhoso processo de esquecimento dos “comos” e dos “por quês” envolvendo sua vida e sua morte, eu precisava descobri-los: ComoPor quêQuandoOndeO quê.
No Quarto 43, depois de um pedido de desculpas rapidamente aceito, o Coronel disse: — Vamos mudar nossa estratégia e desistir temporariamente de telefonar para o Jake. Precisamos procurar outros caminhos antes.

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