quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Vinte e nove dias depois

NO DIA SEGUINTE, quando as aulas terminaram e eu voltei para o quarto,vi o Coronel sentado num banco junto ao telefone público, tomando notas num caderno que ele equilibrava nos joelhos enquanto prendia o telefone entre a orelha e o ombro.
Corri depressa para o Quarto 43 e dei com o Takumi jogando o jogo de corrida com o som desligado.
— Há quanto tempo ele está no telefone? — perguntei.
— Não faço ideia. Ele já estava ali quando eu cheguei faz vinte minutos. Deve ter faltado a aula de matemática para Meninos Inteligentes. Por quê? Está com medo que o Jake venha até aqui para lhe dar uma surra por tê-la deixado ir embora?
— Pode ser, — eu disse, pensando: É exatamente por isso que não deveríamos ter contado para ele. Fui até o banheiro, liguei o chuveiro e acendi um cigarro. Takumi veio logo depois disso.
— Que foi? — ele disse.
— Nada. Só quero saber o que aconteceu com ela.
— Você quer saber a verdade mesmo? Ou quer descobrir que ela brigou com o namorado e estava a caminho de romper com ele para depois voltar, cair nos seus braços, fazer sexo apaixonadamente e ter filhinhos gêmeos que decoram últimas palavras e poesias?
— Se está zangado comigo, é melhor dizer.
— Não estou zangado porque você a deixou ir embora. Mas estou cansado de vê-lo agir como se fosse o único cara apaixonado por ela. Como se tivesse algum monopólio sobre gostar dela. — Takumi respondeu. Fiquei de pé, levantei o assento da privada e dei descarga no cigarro que eu ainda não tinha terminado de fumar.
Encarei-o por um tempo, depois disse: — Eu a beijei naquela noite. Tenho monopólio sobre isso.
— O quê? — ele gaguejou.
— Eu a beijei.
Sua boca se abriu como para falar alguma coisa, mas ele não disse nada. Ficamos nos encarando por um tempo, e eu me senti envergonhado por ter me gabado daquele jeito. Então, por fim, eu lhe disse:
— Olha... Você sabe como ela era. Quando queria fazer alguma coisa, ia lá e fazia. Eu provavelmente fui o cara que calhou de estar ali na hora certa.
— Certo. Mas é que eu nunca fui esse cara, — ele disse. — Eu... Bem, Gordo, Deus sabe que não posso culpá-lo.
— Não conte para a Lara.
Ele estava balançando a cabeça quando ouvimos as três batidas rápidas que indicavam a presença do Águia. Pensei: Droga, pego duas vezes na mesma semana. Takumi apontou para o chuveiro. Entramos no boxe e fechamos a cortina, o chuveiro demasiado baixo cuspindo água em nossas costelas. Forçados a nos aproximar mais do que parecia necessário, ficamos ali dentro, em silêncio, a ducha pingando e molhando lentamente nossas camisetas e nossas calças jeans por uns longos minutos enquanto esperávamos que o vapor levasse a fumaça para os tubos de ventilação. Mas o Águia não bateu na porta do banheiro, e Takumi acabou desligando a ducha.
Espiei pela fresta da porta e vi o Coronel sentado no sofá de espuma, os pés em cima da mesa de centro, terminando a corrida de NASCAR do Takumi. Abri a porta, e nós saímos do banheiro completamente vestidos e ensopados.
— Eis uma coisa que não se vê todo dia, — o Coronel disse, casualmente.
— Que Diabos? — perguntei
— Bati feito o Águia para assustar vocês. — Ele sorriu. — Mas, droga, da próxima vez que quiserem um pouco de privacidade, deixem um bilhete na porta.
Nós rimos, e Takumi disse:
— Certo. Eu e o Gordo estávamos meio afastados, mas, cara, desde que tomamos banho juntos, eu me sinto bem mais próximo de você.
— Então, como foi? — perguntei. Eu me sentei na mesa de centro, e o Takumi se largou no sofá ao lado do Coronel. Estávamos molhados e com um pouco de frio, porém mais interessados em ouvir sobre a conversa do que em nos secar.
— Bem interessante. Eis o que vocês precisam saber: foi ele que deu as flores para ela, como tínhamos pensado. Eles não brigaram. Ele só ligou porque tinha prometido ligar na hora exata do aniversário de oito meses de namoro, que calhou de ser ás três e dois da manhã, o que –convenhamos-é um pouco ridículo. Acho que de alguma forma ela ouviu o telefone tocando. Eles ficaram de conversa-fiada por uns cinco minutos, e então, do nada ela ficou histérica.
— Do nada? — Takumi perguntou.
— Deixe-me fazer uma consulta. — O Coronel folheou o caderno. — Aqui está. Jake diz: ‘O que achou do nosso aniversario de namoro?', Alasca diz: 'Foi esplêndido', — e pude ouvir em sua leitura e empolgação da voz dela, o jeito como Alasca parecia saltitar em palavras como esplêndido, fantástico e certamente. — Silêncio. Jake pergunta: 'Está fazendo o quê?', Alasca responde: ‘Nada,desenhando’, depois, ‘Meu Deus!’ e ‘merda! merda! merda!’, e começou a chorar. Disse que tinha de sair e que depois falava com ele, mas não disse que ia visitá-lo. O Jake não acha que ela estivesse indo visitá-lo. Ela sempre perguntava se podia ir, mas dessa vez não perguntou, então acho que não estava indo para lá. Calma, deixa eu ver se acho a citação. — E virou a página do caderno. — Pronto, achei: ‘Ela disse que falaria comigo, não disse que se encontraria comigo'.
— Ela diz para mim ‘Continuamos depois’ e diz para o Jake que depois falava com ele, — observei.
— É. Eu percebi. Planos para o futuro. Supostamente não combina com suicídio. Então ela volta para o quarto e começa a gritar, dizendo que tinha esquecido alguma coisa. E a corrida arrojada chega ao fim. Continuamos sem resposta.
— Bem, sabemos aonde ela não estava indo.
— A não ser que ela estivesse se sentindo particularmente impulsiva,  — Takumi disse. Olhou para mim. — E, pelo visto, ela estava se sentindo bastante impulsiva naquela noite.
O Coronel olhou para mim inquisitivamente, e eu maneei a cabeça.
— Pois é, — Takumi disse: — Ele me contou.
— Certo. E você ficou furioso, depois tomou um banho com o Gordo e agora está tudo bem. Ótimo. Então, naquela noite... — o Coronel continuou.
Fizemos o possível para ressuscitar a conversa daquela última noite para o Takumi, mas não conseguimos nos lembrar de tudo, em parte porque o Coronel estava bêbado e eu só fui prestar atenção quando ela mencionou Verdade ou Consequência. Além do mais, não sabíamos se aquilo tinha alguma importância. É sempre mais difícil se lembrar das últimas palavras quando você não sabe que a pessoa está para morrer.
— Bem, — disse o Coronel, — acho que eu e ela estávamos conversando sobre o fato de eu gostar dos jogos de skate na vida real. Então ela disse: 'Vamos jogar Verdade ou Consequência', e eles se comeram.
— Calma! Vocês se comeram? Na frente do Coronel? — Takumi gritou.
— Eu não comi ninguém.
— Calma, gente, o Coronel disse, jogando as mãos para o alto. — Foi só um eufemismo.
— Eufemismo para o quê?
— Para beijar.
— Ótimo eufemismo, — Takumi revirou os olhos. — Por acaso, eu sou o único que acha que isso pode ser relevante?
— Claro, nunca pensei nisso, — eu disse, impassivo. — Mas, agora, não sei. Ela não contou para o Jake. Não deve ter sido tão importante assim.
— Talvez ela estivesse se sentindo culpada, — ele disse.
— O Jake falou que ela parecia normal ao telefone antes do ataque de histeria, — o Coronel disse. — Deve ter sido algo nesse telefonema. Alguma coisa aconteceu que não estamos vendo. — O Coronel passou as mãos pelo cabelo grosso, sentindo-se frustrado. — Deus do céu, alguma coisa. Alguma coisa em seu íntimo. Só precisamos descobrir o que era.
— Só precisamos ler os pensamentos de uma pessoa morta, — também disse. — Parece fácil.
— Exato. Quer encher a cara? — o Coronel perguntou.
— Não estou com vontade de beber, — eu disse.
O Coronel vasculhou os recessos do sofá de espuma e puxou a garrafa de Gatorade do Takumi. Ele também não queria beber, então o Coronel abriu um sorriso forçado e disse: — Sobra mais pra mim, — e entornou a garrafa.

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