quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Vinte e sete dias depois

SEIS DIAS DEPOIS, quatro domingos após o último domingo, o Coronel e eu estávamos atirando um no outro com arminhas de paintball enquanto girávamos 900º num half pipe.
— Precisamos de bebidas. Temos de pegar emprestado o bafômetro do Águia.
— Pegar emprestado? E sabe onde ele guarda?
— Sei. Ele nunca fez você passar pelo teste?
— Humm. Não. Ele acha que eu sou um CDF.
— Você é um CDF, Gordo. Mas não pode deixar que um detalhe desses o impeça de beber. — Para ser sincero, eu não bebia desde aquela noite e também não sentia lá muito inclinado a tomar outro gole.
Quase dei uma cotovelada no rosto do Coronel, balançando os braços espaçosamente como se o fato de contorcer o corpo da maneira certa importasse tanto quanto apertar os botões certos nos momentos certos – a mesma ilusão que acometia Alasca quanto ela jogava videogame. Mas o Coronel estava tão centrado no jogo que nem mesmo percebeu.
— Já sabe exatamente como vamos fazer para roubar o bafômetro de dentro da casa do Águia?
O Coronel se virou para mim e disse:
— Você é uma droga nesse jogo? — Então, sem olhar para a tela, atirou nos testículos do meu skatista com uma bolinha de tinta azul. — Mas, antes, precisamos descolar alguma bebida, porque minha ambrosia azedou e minha fornecedora de vodca...
— PUF. Morreu, — conclui.
Quando abri a porta, Takumi estava sentado em sua escrivaninha, balançando-se ao som da música dos enormes fones de ouvido que lhe cobriam toda a cabeça. Parecia alheio à nossa presença.
— Ei! — eu disse. Nada. — Takumi! — Nada. — TAKUMI! — Ele se virou e tirou os fones de ouvido. Fechei a porta e disse: — Tem bebida?
— Por quê? — ele perguntou.
— Hmm... porque queremos beber? — o Coronel respondeu.
— Ótimo. Também quero.
— Takumi, — o coronel disse. — Isso é... Precisamos fazer isso sozinhos.
— Não. Já cansei dessa palhaçada. — Takumi se levantou, foi até o banheiro e retornou com uma garrafa de Gatorade cheia de um líquido transparente. — Fica no armário de remédios, — Takumi disse. — Porque de certa forma, é um remédio. — Colocou a garrafa no bolso e saiu do quarto, deixando a porta aberta. Momentos depois, colocou a cabeça para dentro do quarto e fez uma brilhante imitação da voz grave e autoritária do Coronel: — E então? Vocês vem?
— Takumi, — o Coronel disse. — Olha só, o que nós vamos fazer é meio perigoso. Não quero que se envolva. Sério. Mas a partir de amanhã vamos contar tudo para você.
— Estou cansado de tantos segredos. Ela também era minha amiga.
— Amanhã, juro.
Ele tirou a garrafa do bolso e atirou pra mim.
— Amanhã, — disse.
— Não quero que ele saiba, — eu disse enquanto voltávamos para nosso quarto, a garrafa de Gatorade escondida no bolso do meu casaco. — Ele vai nos odiar.
— Bem, ele vai nos odiar ainda mais se continuarmos fingindo que ele não existe, — o Coronel respondeu.
Quinze minutos depois, lá estava eu batendo à porta do Águia.
Ele me recebeu com uma espátula na mão, sorriu e disse:
— Miles! Entre. Estava fazendo um sanduíche de ovo. Quer?
— Não, obrigada, — eu disse, seguindo o Águia até a cozinha.
Minha função era mantê-lo longe da sala de estar por trinta segundos para que o Coronel pudesse pegar o bafômetro sem ser visto. Tossi bem alto para avisar ao Coronel que o caminho estava livre. O Águia pegou seu sanduíche de ovo e deu uma mordida.
— A que devo o prazer desta visita? — perguntou.
— Só queria avisar que o Coronel, quero dizer, Chip Martin... Bem, ele é meu colega de quarto e está com dificuldades em Latim.
— Bem, pelo que soube, ele está faltando às aulas, e isso dificulta bastante o aprendizado do idioma. — Ele veio em minha direção. Tossi novamente e recuei. O Águia e eu estávamos como dançando tango a caminho da sala de estar.
— Certo, é que ele fica acordado a noite inteira pensando na Alasca, — eu disse, endireitando as costas para ficar mais alto, tentando bloquear a visão do Águia com meus ombros não muito largos. — Eles eram bem chegados, entende?
— Eu sei... — ele disse. Então, na sala de estar, o tênis do Coronel guinchou sobre o piso das tábuas corridas. O Águia olhou para mim estupidamente e deu um passo para o lado. Eu disse depressa. — O fogão está aceso? — e apontei para a frigideira.
O Águia deu meia volta, olhou para a boca do fogão que obviamente não estava acesa e correu até a sala de estar.
Vazia.
Virou-se para mim:
— Está aprontando alguma coisa, Miles?
— Não, senhor. Juro. Só queria falar sobre o Chip.
Ele arqueou as sobrancelhas ceticamente.
— Bem, entendo que a morte da Alasca tenha sido uma perda terrível para os amigos mais chegados. É simplesmente horrível. Não há consolo para tamanha dor, não é mesmo?
— Não, senhor.
— Compreendo o sofrimento dele. Mas a escola é importante. Estou certo de que Alasca teria querido que Chip continuasse seus estudos.
Claro, pensei. Agradeci ao Águia, e ele me prometeu um sanduíche de ovo um dia desses. Fiquei com medo de que ele quisesse aparecer numa tarde qualquer em nosso quarto com um sanduíche de ovo na mão para nos pegar (a) fumando ilegalmente enquanto o Coronel (b) bebia ilegalmente seu galão de leite com vodca.
A meio caminho do círculo dos dormitórios, o Coronel veio correndo em minha direção.
— Essa do ‘fogão aceso?’ foi ótima. Se você não tivesse dito isso, eu estaria frito. Se bem que, agora, acho que terei de voltar para as aulas de latim, maldito latim.
— Conseguiu pegar? — perguntei.
— Consegui, — ele disse. — Santo Deus! Espero que o Águia não queira usá-lo esta noite. Se bem que ele jamais suspeitaria. Por que alguém iria roubar o bafômetro?
Às duas da manhã, o Coronel tomou sua sexta dose de vodca, fez uma careta e depois gesticulou freneticamente na direção da garrafa de Moutain Dew que eu estava bebendo. Passei-lhe a garrafa e ele tomou um longo gole.
— Acho que não vou conseguir ir para a aula de latim amanhã, — ele disse, embolando um pouco as palavras, como se estivesse com a língua inchada.
— Só mais uma, — pedi.
— Está bem. Mas é a última, certo? — Ele colocou um pouquinho de vodca no copo plástico, engoliu, franziu os lábios e fechou os pequenos punhos. — Credo, muito ruim! Com leite fica melhor. É bom que eu esteja com 0,24%.
— Temos que esperar quinze minutos depois do último drinque para poder fazer o teste, — eu disse, tendo baixado o manual do bafômetro na internet. — Está se sentindo bêbado?
— Se com ‘bêbado’ você quer dizer biscoito, estou me sentindo um pacote de Famous Amos.
Nós rimos.
— Chips Ahoy! Teria sido mais engraçado, — eu disse.
— Desculpa. Não estou no meu melhor.
Eu estava com o bafômetro na mão, um dispositivo eletrônico, prateado e lustroso, mais ou menos do tamanho de um pequeno controle remoto. Embaixo de uma tela de LCD havia um buraquinho. Soprei ali dentro para testar: 0,0 mostrou. Concluí que estava funcionando.
Quinze minutos depois, entreguei o aparelho ao Coronel.
— Põe a boca aí e assopra com força por dois segundos pelo menos, — eu disse.
Ele olhou pra mim.
— Foi isso o que você falou para a Lara na sala de tevê? Porque, sabe, Gordo, só porque o nome é boquete não significa que basta colocar a boca!
— Para de falar e assopra, — eu disse.
Com as bochechas infladas, o Coronel soprou dentro do buraquinho com força e por bastante tempo até seu rosto ficar vermelho.
0,16%.
— Ai, não, — o Coronel disse. — Santo Deus!
— Já se foram dois terços, — eu disse, tentando encorajá-lo.
— Mas estou quase vomitando.
— Bem, está na cara que é possível. Ela conseguiu. Vamos lá? Não consegue beber mais do que uma garota?
— Passa a garrafa de Moutain Dew, — ele disse estoicamente.
Então ouvi passos lá fora. Passos. Tínhamos esperado até 1h da manhã para acender as luzes, achando que todo o mundo já estaria dormindo a essa hora - afinal de contas, era dia de aula -, mas passos, droga! Enquanto o Coronel olhava para mim, confuso, peguei o bafômetro de sua mão e o enfie entre as almofadas de espuma do sofá, depois peguei o copo plástico e a garrafa de Gatorade cheia de vodca e escondi tudo atrás da MESA DE CENTRO, e, num único movimento, peguei um maço de cigarros e acendi um deles, esperando que o cheiro de fumaça cobrisse o cheiro de bebida. Soprei sem tragar, tentando encher o quarto de fumaça. Já estava quase de volta ao sofá, quando ouvi três batidas rápidas na porta. O Coronel se virou para mim, os olhos arregalados, um futuro pouco promissor passando diante de seus olhos, e eu sussurrei:
— Chora, — quando o Águia girou a maçaneta.
O Coronel se curvou para a frente, a cabeça entre os joelhos, o dorso tremendo, e eu passei o braço sobre seus ombros quando o Águia entrou.
— Desculpa, — eu disse antes mesmo que o Águia pudesse abrir a boca. — Ele está tendo uma noite difícil.
— Você está fumando? — o Águia perguntou. — No quarto? Quatro horas depois do toque de apagar as luzes?
Larguei o cigarro dentro de uma garrafa meio vazia de Coca-Cola.
— Desculpa, senhor. Só estou tentando passar a noite acordado com ele.
O Águia caminhou em nossa direção, e o Coronel ameaçou se levantar, mas eu o segurei pelos ombros com firmeza, pois, se o Águia sentisse seu bafo, certamente seríamos expulsos.
— Miles, — o Águia disse. — Entendo que não esteja sendo fácil. Mas você precisa respeitar as regras da escola, senão vai ter que se matricular em outro lugar. Nós nos vemos amanhã no Júri. Posso fazer alguma coisa por você, Chip?
Sem olhar para cima, o Coronel respondeu numa trêmula e chorosa:
— Não, senhor. Só estou feliz por ter o Miles.
— Certo. Eu também, — o Águia disse. — Sugiro que você o convença a seguir nossas regras para que ele não seja expulso da escola.
— Sim, senhor, — o Coronel disse.
— Podem deixar as luzes acesas até conseguirem dormir. Nós nos vemos amanhã, Miles.
— Boa noite, senhor, — eu disse, imaginando que o Coronel poderia entrar furtivamente na casa do Águia enquanto o Júri me passava um sermão. Quando o Águia bateu a porta, o Coronel se levantou depressa, sorrindo para mim, e, ainda com medo de que o Águia estivesse lá fora, sussurrou:
— Isso foi lindo.
— Aprendi com o melhor, — eu disse. — Agora beba.
Uma hora depois, tendo praticamente esvaziado a garrafa de Gatorade, o Coronel atingiu a marca de 0,24%.
— Obrigado Jesus! — ele exclamou, depois acrescentou: — Isso é horrível. Ficar bêbado assim não é nem um pouco divertido.
Levantei-me e tirei a MESA DE CENTRO do caminho para que o Coronel pudesse andar de um lado para o outro, sem tropeçar em nenhum obstáculo, e disse:
— Pronto, consegue ficar de pé?
O Coronel afundou os braços na espuma do sofá e começou a se levantar, mas perdeu o equilíbrio e caiu prá trás.
— O quarto está girando, — ele disse. — Vou vomitar.
— Não. Assim você vai estragar tudo.
Decidi submetê-lo a um teste de sobriedade, como os policiais costumam fazer.
— Certo. Venha até aqui e tente caminhar em linha reta. — Ele se virou para sair do sofá e caiu no chão. Eu o peguei pelo braço e o ajudei a se levantar. Coloquei-o entre duas placas do piso de linóleo. — Siga essa fileira. Postura reta. Primeiro a ponta do pé, depois o calcanhar. — Ele levantou as pernas e imediatamente balançou para a esquerda, os braços girando como moinhos de vento. Deu um passo meio desequilibrado, gingando como um pato, pois devia estar com dificuldades para colocar um pé na frente do outro. Recuperou o equilíbrio por alguns segundos, depois deu um passo para trás e desabou no sofá.
— Não consigo, — disse, simplesmente.
— Certo. E como está sua percepção de distância?
— Minha percepcio-quê?
— Olha para mim. Está vendo um Gordo? Dois Gordos? Acha que poderia se chocar acidentalmente comigo se eu fosse um carro de polícia?
— Estou tonto, mas acho que não. Isso é horrível. Será que ela estava assim?
— Pelo jeito. Acha que conseguiria dirigir?
— Santo Deus! Não, não. Ela realmente estava muito bêbada.
— Estava.
— Nós fomos muito estúpidos.
— Fomos.
— Estou com um pouco de tontura. Mas não. Carro de polícia, não. Eu consigo enxergar.
— Então está aí sua prova.
— Ela pode ter cochilado. Estou morrendo de sono.
— Vamos descobrir, — eu disse, tentando representar o papel que o Coronel sempre representara para mim.
— Hoje não, — ele respondeu. — Hoje, vamos vomitar um pouquinho e depois vamos dormir até a ressaca passar.
— Não se esqueça da aula de latim.
— Certo. Maldito latim.

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