quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Vinte e um dias depois

NO DIA SEGUINTE, quando o Sr. Hyde entrou na sala de aula arrastando os pés, Takumi se sentou ao meu lado e escreveu uma mensagem na beira do seu caderno. Almoço no McIncomível.
Escrevi um rápido ok quando o Sr. Hyde começou a falar sobre o sufismo, a seita mística do islã. Eu só tinha passado os olhos pelo texto – àquela altura estava estudando apenas o necessário para não ser reprovado -, mas, em minha breve leitura, tinha encontrado excelentes últimas palavras. Um surfista pobre e andrajoso entra numa joalheria de um comerciante rico e lhe pergunta:
— Sabe como vai morrer?
O comerciante responde:
— Não, ninguém sabe como vai morrer.
E o sufista diz:
— Eu sei.
— Como? — Pergunta o comerciante.
O sufista se deita no chão, cruza os braços e diz:
— Assim, — e morre. Então, na mesma hora, o comerciante abre mão da loja e vai viver uma vida de pobreza em busca da riqueza espiritual que o sufista morto possuía.
Mas o Sr. Hyde estava contando uma história diferente, uma das que eu tinha pulado.
— Karl Max disse numa passagem famosa que a religião era o 'ópio do povo'. O budismo, principalmente em sua manifestação mais popular, promete a evolução através do karma. O islamismo e o cristianismo prometem um paraíso eterno para os fiéis. E isso é um ópio poderoso, é claro, a promessa de uma pós-vida melhor. Mas há uma parábola sufista que desmente essa noção de que as pessoas acreditam em Deus apenas porque precisam de seu ópio. Rabe’a AL-Adiwiyah, uma mulher santa de grande importância para o sufismo, foi vista correndo pelas ruas de sua cidade natal, Basra, segurando uma tocha numa das mãos e um balde de água na outra. Quando lhe perguntaram o que ela estava fazendo, responde: ‘Vou derramar este balde de água sobre as chamas do inferno e depois vou queimar os portões do paraíso com esta tocha para que as pessoas amem Deus não por desejarem o paraíso e por temerem o inferno, mas por ele ser Deus.’
Uma mulher tão poderosa que é capaz de queimar os portões do paraíso e inundar o inferno. Alasca teria gostado dessa tal Rabe’a, escrevi em meu caderno. No entanto, a pós-vida importava para mim. O céu, o inferno, a reencarnação. Por mais que eu quisesse descobrir as circunstâncias da morte da Alasca, o que eu mais queria saber era onde ela estava agora, se estava em algum lugar. Gostava de imaginá-la olhando por nós lá de cima, ainda consciente de nossa existência, mas isso me parecia uma fantasia. E eu nunca tinha sentido nada daquilo – como o Coronel disse no funeral: ela não estava lá, não estava em lugar nenhum. Para ser sincero, eu só conseguia pensar nela morta, o corpo apodrecendo em Vine Station, e o resto um mero fantasma que vivia apenas em nossas lembranças. Como Rabe’a, eu não achava que as pessoas deveriam acreditar em Deus só por causa do céu e do inferno. Mas também não sentia necessidade de sair correndo por aí com uma tocha. Não se pode incendiar um lugar inventado.
Depois da aula, enquanto o Takumi revirava suas batatas fritas no McIncomível, escolhendo apenas as mais crocantes, eu senti todo o peso de sua perda, ainda abalado com a ideia de ela ter se ausentado não só deste mundo como de todos os outros.
— Como tem passado? — perguntei.
— Humm, — ele disse, a boca cheia de batatas fritas, — não muito bem. E você?
— Não muito bem. — Dei uma mordida no meu cheeseburger. Tinha ganhado um carrinho de plástico junto com o McLanche Feliz, e ele ficou ali, capotado sobre a mesa. Girei as rodas.
— Sinto falta dela. — Takumi disse, empurrando a bandeja de lado, dispensando o restante das batatinhas moles e gordurosas.
— É, eu também. Sinto muito, Takumi, — eu disse, no sentido mais amplo da expressão. Sentia muito por termos terminado daquele jeito, girando rodinhas no McDonalds. Senti muito pela morte da garota que nos aproximara. Sentia muito por tê-la deixado morrer. Sinto muito por não ter falado com você, mas não podia lhe contar a verdade sobre o Coronel e eu. Odiava ficar na sua companhia e ter de fingir que meu sofrimento era algo simples – fingir que ela tinha morrido e que eu sentia sua falta, em vez de me sentir culpado por sua morte.
— Eu também. Você ainda está namorando a Lara?
—  Acho que não.
— Certo, ela queria saber.
Eu vinha ignorando minha namorada, e, depois de um tempo, ela também passou a me ignorar, então pensei que estivesse acabado, mas talvez não.
— Bem, — disse para o Takumi, — não dá para... Não sei, cara. É complicado.
— Certo. Ela vai entender. Claro. Não se preocupe.
— Tudo bem.
— Olha só Gordo. Eu, bem... Sei lá. É horrível, não é?
— É, sim.

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